OLD SCHOOL #2
ANA VIDIGAL “CINE MAR(A)VIL(H)A”
21 de Setembro de 2011, 22h
Espaço Teatro Praga (Poço do Bispo), Lisboa
*One night only*
ANA VIDIGAL “CINE MAR(A)VIL(H)A”
21 de Setembro de 2011, 22h
Espaço Teatro Praga (Poço do Bispo), Lisboa
*One night only*
VIDEOGRAFIAS
Pedro Faro
“All of us (artists, critics, curators, historians,
viewers) need some narrative to focus our present practices – situated stories,
not grands récits.”
Hal Foster, Design and Crime
“We live in the wake not only of modernist painting and
sculpture but of postmodernist deconstructions of these forms as well, in the
wake not only of the prewar avant-gardes but of the postwar neo-avantgardes as
well”
Hal Foster, Design and Crime
Suspeita de gripe A? Nada para fazer. Isolada em casa,
Ana Vidigal faz uns vídeos para o Facebook. Auto-retratos em frente a um
computador. Performances descontraídas. Os títulos amplificam a acção. Colagens
simbólicas. Readymades. Sobreposições metafóricas. Pequenas narrativas sobre o
quotidiano. No Youtube, outros vídeos exploram relações poéticas absurdas,
investem sobre a estranheza dos pequenos fenómenos da vida. Acção!
Na recente antológica de Ana Vidigal, “Menina Limpa,
Menina Suja”, comissariada por Isabel Carlos, no Centro de Arte Moderna da
Fundação Gulbenkian (Julho 2010), uma obra em vídeo dava início à exposição – “Domingo
à Tarde”. Datado de 2000, esse era o único vídeo dessa exposição e, segundo
Isabel Carlos, “funciona como uma chave para toda a obra, dado que revela a
prática, a metodologia e o processo de Vidigal”, mais conhecida pelas suas
pinturas, colagens, e agora, também, pelas suas instalações.
Durante mais de 30 anos, a artista tem explorado
criticamente a memória, a história, as imagens que nos formaram, os
estereótipos do "feminino", as implicações simbólicas do decorativo
e, em última análise, as qualidades estabelecidas e enformadoras daquilo que se
convencionou chamar de "prática artística feminina", dando-nos, como
refere Isabel Carlos, "uma espécie de retrato iconográfico dos últimos 30
anos de uma democracia ainda atravessada por muitos anacronismos, moralismos e
assimetrias". Ponto de partida, Domingo à Tarde, um vídeo realizado com uma câmara de filmar doméstica, “regista a artista
a operar uma série de acções sobre o seu próprio rosto: primeiro cobre-o de
fita-cola dupla; adiciona-lhe pioneses, plasticina, enclausura-o num saco de
plástico transparente; finalmente, apresenta-o reflectido numa superfície
espelhada que o deforma e transfigura com a ajuda das mãos e de sucessivos
esgares e caretas” (Isabel Carlos, “Menina limpa, Menina Suja”).
Comissariada por Susana Pomba, “CINE MAR(A)VIL(H)A” é uma
sessão especial de projecção, em loop, de
vários vídeos realizados por Ana Vidigal, de forma descomprometida e regular,
para duas plataformas virtuais que introduziram óbvias mudanças na forma como
nos relacionamos com a tecnologia, com a informação, com o arquivo e com o
mundo: Facebook (criado em 2004) e Youtube (criado em 2005). Segundo Susana
Pomba, “descobrimos que esses vídeos, feitos para a internet, cheios de humor e
reflexão social e política, têm as mesmas qualidades e preocupações que muitos
dos trabalhos da autora e informam a nossa reflexão acerca do seu trabalho. A
imagem em movimento parece ter começado a fazer parte dos suportes utilizados
pela artista, depois da obra ‘Domingo à Tarde’.”
É no computador, mais precisamente no ecrã deste objecto
ambíguo e omnipresente, que nos habituámos a ver os vídeos que Ana Vidigal
passou a “postar” (publicar) com regularidade, desde há uns anos, no Youtube,
no Facebook e no seu blogue pessoal. Diários videográficos? Cada vídeo ou
objecto deste tipo assume a experiência ou a forma de uma cápsula que, ao ser
lançada no ciberespaço, sobrevive para lá da sua realidade material, temporal e
espacial inicial. A artista “partilha”, “publica” e “carrega”. No essencial,
estes vídeos remetem para uma vivência imediata da realidade do nosso tempo,
reinserindo ou adaptando, de forma quase recreativa e criticamente ligeira,
alguns dos pressupostos de experimentação das vanguardas, ou das neovanguardas,
aos contextos tecnológicos das sociedades actuais.
Numa recente entrevista, amplamente difundida nas redes
sociais, Carolyn Christov-Bakargiev, directora artística da próxima Documenta
13, em Kassel, sublinhava, entre outras ideias (a relevância do arquivo), a
importância, sobretudo, do Youtube para uma certa mudança do estatuto da imagem
e para a recuperação de um certo espírito ou estética “povera” (“vídeo povero”), em oposição a um virtuosismo técnico que, em muitos
casos, distrai-nos do essencial. Bastante mais polémico, o Facebook tem estado
no centro de inúmeras discussões, mais e menos académicas, em torno da temática
das redes sociais, entre ferozes opositores (perigos da alienação e reificação)
e fervorosos adeptos dos novos meios de relação, partilha e interacção.
Para Hans Belting, “os novos meios criaram um público em
que cada um está sozinho consigo mesmo” (A verdadeira Imagem). A verdade é que a destabilização do conceito arte e a sua expansão para
outros domínios e valências não é uma novidade, mesmo quando falamos de novas
plataformas de difusão. Muitos anos antes destas possibilidades digitais,
Adorno, em “Aesthetic Theory”, sublinhava as suas contradições, ou seja, “it is
self-evident that nothing concerning art is self-evident anymore, not its inner
life, not its relation to the word, not even its right to exist. The forfeiture
of what could be done spontaneously or unproblematically has not been
compensated for by the open infinitude of new possibilities that reflection
confronts. In many ways, expansion appears as contraction...”. Um regresso às origens?
Sensibilidade feminina
São inúmeras as referências que Ana Vidigal utiliza no
seu processo videográfico. Pequenos objectos ou produtos (Laca Sunslik,
esfregão Scotch-Brite, caldos Knorr, varinha-mágica, margarina Planta,
Ben-U-Ron, chocolates de Natal...), músicas, desenhos animados, personagens
infantis, política, religião, sexualidade, épocas festivas, antigos anúncios de
publicidade (“jingle”), são desconstruídos em divertidas apropriações. A
artista faz-se autorepresentar como sujeito de experiência, sobretudo na série
de vídeos para o Facebook. Os óculos de ver, com que geralmente aparece,
reflectem a luz do ecrã e denunciam “os modos de fazer” estes vídeos. Há um
início e um fim, sem qualquer edição intermédia. No Youtube, por sua vez, Ana
Vidigal, motivada por aspectos do quotidiano, faz emergir uma curiosa poética
nos limites do absurdo, limitando-se, por vezes, a fixar ou a constatar
contradições, sobreposições, diálogos, práticas de ateliê, fenómenos,
intervenções na paisagem e curiosidades. Assume uma enigmática e ambígua
posição discursiva que varia entre o implícito e o explícito, sem uma direcção
assumida mas com alusões cinematográficas, literárias, musicais... que revelam
o exótico nos mais pequenos detalhes, gestos e olhares.
Ou seja, em todos estes vídeos há uma subjectividade
evidente que explora e partilha diferentes elementos do sensível. Para Jacques
Rancière “a ‘partilha do sensível’ designa o sistema de evidências sensíveis
que dá a ver, em simultâneo, a existência de um comum e os recortes que
definem, no seio desse comum, os lugares e as partes respectivas.” As obras de
Ana Vidigal operam sobre o comum e são, por isso mesmo, sem parecerem num
qualquer imediato, politizadas, ou seja, partilham da vontade de “perturbar a
relação entre o visível, o dizível e o pensável, sem ter de fazer passar
nenhuma mensagem” - definição do “sonho da obra política adequada”, segundo J.
Rancière. À semelhança do que nos diz o filósofo francês, na maioria das suas obras,
Ana Vidigal “desfaz um tecido sensível – uma determinada ordem de relações
entre o visível e as significações - e constitui outros tecidos
sensíveis”. Ou estabelece uma
“arqueologia do tempo presente” (Ana Hatherly)? Mas o que é o quotidiano?
O quotidiano, nas suas diferentes formulações,
estratificações instantâneas do real, aparece-nos nas obras de vídeo para
internet, realizadas por Vidigal, como campo de trabalho privilegiado. A
artista produz objectos videográficos aparentemente incongruentes, alicerçados
numa prazeirosa e excêntrica estratégia crítica, e realizados a partir de
perturbantes deslocamentos ou dispersões que sublinham, de um modo
profundamente irónico, conteúdos visuais, tradições e contextos sociais muito
específicos. Ao inscrever uma certa estética que procura fixar, sem qualquer
deslumbre tecnológico, a imediatez do captado, o registo da performance, quase
“live” e docemente corrosivo, Ana Vidigal explora, através da
auto-representação, da auto-referencialidade, da colagem e da sobreposição,
como refere Isabel Carlos, “essa outra dimensão mais espacial e, no limite,
mais experimental, ou, melhor dito, mais livre de cânones e de constrangimentos
formais”, sem plinto e sem moldura. Através de originais intersecções irónicas,
os vídeos de Ana Vidigal desmontam narrativas e imagens do (in)consciente
colectivo, a partir de experiências e percepções que se alicerçam na própria
biografia e corpo/rosto da artista (película onde se inscrevem progressivamente
as leis e os costumes – discursos dominantes - da sociedade).
A distorção ou a elasticidade dos significados, a curta
duração dos vídeos, a total economia de meios e gestos (mordazes) implicados em
cada acção - a complementar relação entre título e obra e a atitude levemente
provocatória - são garantia de uma ligação directa, quase lúdica, entre artista
e público. São gestos de rebelião que actuam sobre um sistema de signos.
Estamos perante uma subjectividade entediada e inconformada com a crescente e
contagiante anemia crítica. O tom parodiante revela o mal-estar efervescente,
indiciando aspectos ou questões sociais e culturais fracturantes como
matéria-prima essencial. Estes vídeos, ao contrário dos vídeos seminais dos
anos 60 e 70, não desafiam as instituições tradicionais da arte mas continuam a
exigir do espectador uma atenção comprometida. São “postados”, “partilhados” e
“carregados”, como já referimos. Existem numa rede, num arquivo que os
relaciona com outros semelhantes ou diferentes, por vezes complementares e
amplificadores de novos sentidos e direcções.
Afinidades
Segundo Marita Sturken, no texto “Olhando para trás. Arte
do vídeo nos anos sessenta e setenta” (Circa 1968), nos
anos 60 e 70, havia o desejo (ilusório) de ver o vídeo como “um meio sem
história, pré-história ou antepassados”, ou seja, “foi muitas vezes afirmado
que o vídeo e a performance constituíam suportes principalmente para as
mulheres artistas nos anos 70 precisamente porque não transportavam a herança
de domínio masculino da escultura e da pintura”. Actualmente, apesar dessa
posição historiográfica já não ser aceitável, não deixa de ser curioso
constatar que para Ana Vidigal, as principais influências ou referências vêm,
sobretudo, do trabalho desenvolvido por mulheres artistas no âmbito do vídeo e
da performance. Foram fundamentais para o seu trabalho (pintura, colagem,
instalação) e enformam, certamente, este tipo de exercícios descontraídos e
efémeros que a artista passou a registar com regularidade desde há uns anos,
como forma de ocupar o tempo. Martha Rosler, Gina Pane, Sophie Calle, Monthy
Python, Gabriel Abrantes, entre outros, são alguns dos nomes que compõem uma
ampla esfera de afinidades que Vidigal foi preenchendo ao longo da sua vida,
desde as viagens familiares que fazia durante a sua juventude pela Europa até à
actualidade. Destes nomes, valoriza, sobretudo a crueza investida por eles nas
suas obras e a capacidade de fazerem muito com pouco. Quando falamos sobre as
suas motivações, os seus processos e os seus interesses aparecem-nos os objectos
apropriados, os adereços, o espaço da casa, do ateliê, o bairro, a vista da
janela, as viagens, as montagens de exposições, os amigos, as notícias, a
publicidade, a literatura...
Estes vídeos descontraídos, sem pretensões, como sublinha
tantas vezes a artista, em conversa, reflectem, uma vez mais, no longo percurso
de Ana Vidigal, as possibilidades criativas do tédio associadas a uma constante
vontade de produzir fora do espectro estrito da pintura ou do ateliê,
motivando-a a descobrir novos modos de produção, novas técnicas e suportes,
novas formas complementares de estar na prática artística. Assim, o medium
vídeo é redescoberto num contexto digital, onde proliferam interfaces variados
e outros dispositivos de relação com a obra, com as imagens, com as performances
construídas pela artista. Mas, como refere Hal Foster, “however digital in
operation, this new world is still visual in appearence, as its language of
‘screens’, ‘windows’, and ‘interfaces’ underscores. The screen remains the
dominant modality of the electronic archive, but what kind of image is it
exactly? Clearly it differs radically from the pictorial tableau of painting,
but it also diverges from the projected image of cinema as well as the
broadcast image of television. (In
some ways it retains the problematic aspects of both mediums: the fascination
of viewers as in film, the separation of viewers as in television).” (Design
and Crime).
Afinal, a Pintura aqui tão perto.
Pedro Faro
Rua Augusta, Lisboa, Setembro 2011
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